As aventuras de um
ciclista urbano
Sensível ao apelo do governo para economizar gasolina
e, no íntimo, coagido pela insuficiência da verba para combustível (nesta
altura do orçamento já plenamente comprometida), não lhe restou outro recurso senão
adotar a bicicleta.
Chamou a mulher de lado, confidenciou: - Prepara minha
sunga esportiva; amanhã vou trabalhar de selim e guidão.
Estava um pouco destreinado. Faltava-lhe o equilíbrio
dos velhos tempos e, para evitar o fiasco diante dos vizinhos, saiu de casa às
5 da matina.
Cruzou com o leiteiro. Quis fingir que não viu, mas sem
resultado: - Força, doutor. No começo a gente padece mesmo. No fim é moleza.
Ficou em dúvida se pegava a Avenida Heitor Penteado ou
se descia pela Água Branca. Lembrou-se da subida da Pompéia, não ia aguentar o
repuxo. Melhor não arriscar. Escolheu as ruas mais planas, no sexto quarteirão
já bufava. Respirou fundo, enchendo os peitos. Desembocou a custo nas Perdizes
em frente ao Elevado Costa e Silva - o tal de Minhocão. Mentalmente mediu o percurso,
nem lhe passou pela ideia que é proibido o trânsito de ciclistas no elevado.
Quando deu fé, já estava nele. Atrás de si, a fila de carros. Por cautela,
conservava a direita, mas a providência não lhe poupou o dissabor de algumas
diatribes. Um sujeito barbudo, dirigindo um fusca, chamou-o de molenga. Outro
lhe mostrou a língua, em atitude altamente obscena. E até uma mulher se julgou
no direito de desacatá-lo: - Folgado, hem, cara!
Por um momento sentiu a tentação de saltar lá de cima,
com bicicleta e tudo, mas o senso do dever, o espírito cívico e o apelo
governamental estimularam-no a prosseguir pedalando. Na altura da Praça
Marechal Deodoro encarou a estátua de Pereira Barreto, e a copa verde das
árvores onde os pardais pareciam acompanhar seu esforço hercúleo. Pouco a pouco
suas pernas amoleciam. Uma dor aguda percorria-lhe o cangote, descia até o
tendão-de-aquiles, e ele teve a impressão de que ia fazer xixi.
Só quem passou por essa experiência sabe o que é isso.
Lembrou-se dos filhos, da família, de seus
antepassados. E súbito, ocorreu-lhe a ideia: pôs-se a assobiar o Hino Nacional.
Esse expediente trouxe-lhe algum conforto, mas os pedais - certamente mal
lubrificados - opunham crescente resistência ao movimento de suas juntas.
- Vai, ciclista das arábias!
O berro ecoou no Minhocão como uma afronta. Era demais.
Mesmo considerando sua fina educação, forçoso responder à altura:
- Das arábias é a mãe!
Aliviado, percebeu o desvio à direita. Tomou o rumo do
Arouche, pegou a Vieira de Carvalho - onde há aquele índio de cócoras - e saiu
triunfalmente na Praça da República. Olhares intrigados fixavam-no. Crianças
acenavam os lenços.
O semáforo estava vermelho; ele aproveitou para
descansar o pé direito no asfalto e adivinhou que estava prestes a desmaiar.
Iria cair ali mesmo, como um pedaço de chumbo. E não o arrancariam dali nem
amarrado. Uma velhinha de preto chegou-se delicadamente, indagando onde ficavam
os Correios e Telégrafos: queria pôr uma carta para Botucatu, urgente.
Ele tentou explicar, mas as palavras engrolavam como um
bolo na garganta. Tentou cuspir, mas não havia saliva. Do nariz escorria lama
grossa, dessas que os barbeiros usam para massagear o rosto dos fregueses e
evitar rugas. Seu coração palpitava. Ardiam-lhe os pulmões. Suas nádegas
estavam adormecidas.
A velhinha percebeu seus olhos vidrados, condoeu-se,
ofereceu-lhe uma balinha de hortelã-pimenta.
Quando o semáforo abriu, ele tentou arrancar na
bicicleta, mas o ar escureceu. Relâmpagos cruzavam o espaço, explodiram trovões
em sua cabeça, ele rodopiou, caiu sentado perto do bueiro. Um rato saltou de
banda, lépido. Ninguém se aproximou, pensando tratar-se de um caso comum de
morte natural. O guarda de trânsito trilou o apito, ordenando que se
levantasse, estava atrapalhando o livre escoamento dos veículos. Ofegante,
garganta áspera, sentia-se um perfeito miserável entregue às baratas.
Só emergiu da névoa quando recebeu das mãos do
homem-da-lei a notificação de multa por estacionamento em local proibido. Em
vão procurou explicar que não tinha estacionado: tinha pifado.
Com a lei não se argumenta.
Montou novamente na bicicleta, trôpego, sonado,
à deriva: desguiou pela direita, entrou na São Luís, bateu num ônibus,
atropelou uma galinha, subiu na ilha, derrapou na calçada, trombou com um
poste, rasgou a saia de uma garota, tirou uma fina no carro-tanque do
corpo-de-bombeiros, atrapalhou uma ambulância, desacatou um guarda-rodoviário
que estava largando o serviço, e entrou num bar da Praça João Mendes. Tudo sem
desmontar da bicicleta.
Foi posto para fora a pescoções, caiu no buraco da
estação do metrô da Praça Clóvis, um fiscal autuou-o por poluir a cidade com o
suor que escorria pelas pernas - mas felizmente conseguiu chegar a seu destino
na Rangel Pestana, a tempo de assinar o ponto na repartição competente.
Como, porém, estivesse com a camisa rasgada, o paletó
sem a manga direita, ligeiras escoriações por todo o corpo e de sunga, recebeu
ordem superior para retirar-se, sob pena de abertura de inquérito
administrativo de acordo com os estatutos em vigor.
Desagradável, sem dúvida. Mas um ciclista não se faz
num dia. De qualquer forma, solicita aos cidadãos desta cidade que, se algum
encontrar suas calças (que devem ter ficado no trajeto entre a Rua das
Palmeiras e o Edifício da Fazenda), queira por obséquio entregá-las na Rua da
Alegria.
Dependendo do estado das calças, estuda-se módica
gratificação.
Lourenço
Diaféria
I - Levantamento do vocabulário
a) senão - b)coagido - c) confidenciou - d) selim - e) guidão - f) dissabor - g) diatribes - h) hercúleo -
i) súbito - j) afronta - k) lépido - l) trópego - m) sonado
II - As aventuras de um ciclista urbano - Entendendo o texto
1 – O texto é narrado em que pessoa?
2 – Retire um fragmento que prove sua resposta anterior.
3 – O que faz o personagem decidir ir para o trabalho de
bicicleta?
4 – Que preocupação teve o ciclista com relação aos colegas
de trabalho?
5 - A aventura, conforme o leitor
pode prever logo ao início da leitura, é um desastre. Por quê?
6 – O que ele fez para evitar o
constrangimento com os vizinhos?
7 – Por que o ciclista começa a
assoviar o hino nacional?
III - Gramática aplicada ao texto
a) "No começo a gente padece mesmo." O termo sublinhado é uma representação típica da linguagem coloquial. Reescreva o período utilizando a norma culta padrão.
b) O texto é narrado em terceira pessoa; portanto, o narrador é onisciente. Reescreva o sexto parágrafo na primeira pessoa, transformando o narrador em narrador-personagem.
c) "...mas os pedais - certamente mal lubrificados - opunham crescente resistência ao movimento de suas juntas."
- Comente oralmente a oração acima.
- Identifique o sujeito dessa oração.
- As palavras certamente e mal são ____________________________________________ (dê a sua classe gramatical)
( ) advérbio
( ) locução adverbial
Justifique sua resposta: _____________________________